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900eMuitos Letrados



PROJETO SOCIOEDUCACIONAL VOLUNTARIADO
O Projeto teve início no ano de 2016, a partir de uma conversa informal,
despretensiosa, com um menino de 11 anos.

Era um domingo e comemorávamos o meu aniversário que havia acontecido dois dias antes. A festa se resumia a uma pequena reunião de parte da família. Estávamos sentados na porta da casa que tinha a sua frente uma praça meio abandonada, mas muito utilizada pelas crianças que moravam no entorno do condomínio onde eu morava. Os meninos e meninas vinham brincar nos brinquedos que mesmo quebrados, reinventados, lhes serviam.

Naquele dia, um dos meninos veio pedir água. Meu irmão, levado a descontrações, ofereceu-lhe refrigerante e o convidou para comer uns pedacinhos de carne que estavam assando na churrasqueira que se encontrava na varanda, do lado de dentro da casa. Vieram outros meninos e uma menina. Sentamo-nos então na varanda e do meu lado sentou-se o menino que pediu água primeiro. Meu irmão perguntou-lhe o seu nome. Ele respondeu e antes que lhe fizessem outra pergunta:

“- Meu nome é ... E eu não sei ler não!”
Aquela resposta pronunciada como um grito: não me pergunte em que série eu estou na escola ou coisa do tipo, imediatamente me chamou atenção. Ao lado dele, perguntei baixinho a sua idade e se ele tinha vontade de aprender a ler. Ele prontamente respondeu que sim. Então, respondi: “- Vou te ensinar a ler e escrever. Você quer mesmo, né? Então fale com a sua mãe e se ela deixar, na próxima sexta-feira você vem que eu vou te ensinar a ler”.

Encontro marcado. Fui trabalhar na escola com uma alegria e uma ansiedade que me animava. Queria que a próxima sexta-feira chegasse logo. Ao chegar em casa, a tardinha, ainda vestida com os trajes da labuta, me chega ao portão o menino e mais três amigos. Travamos um rápido diálogo:

- Tia, eu vim para aula hoje.

- Tá bom, mas nós marcamos na sexta-feira. E quem são esses outros meninos?

- Ah, Tia, hoje não é sexta-feira não?

- Não, hoje é segunda-feira ainda. Na próxima sexta você vem. Mas e esses meninos?

- Ah, Tia, eles não sabem ler também não!

Pausa para refletir.
- Tá. Conversou com a sua mãe? O que ela disse?

- Ela disse que eu posso, Tia. Só não posso fazer bagunça.

Me dirigindo aos outros meninos:

- Então, qual o nome de vocês? Precisam conversar com os seus responsáveis e trazer algum papel assinado dizendo que vocês podem vir aprender a ler e escrever. Elas me conhecem?

- Conhece sim, Tia! A minha mãe disse que a senhora é professora.

- Ah, é? Qual o nome dela?

Todos falaram ao mesmo tempo: “-É fulana!”.

- Certo, então não esqueçam o combinado e até sexta.

O dia seguinte me tomou de anseio e preocupação com a responsabilidade que havia assumido. Perguntei-me por que estava fazendo aquilo. A resposta veio fácil. Eles precisavam de ajuda. E eu era professora. Alfabetizadora. A preocupação inicial deu lugar a outras, como o melhor dia e horário para assumir aquele compromisso e o local adequado.

Comecei a organizar algumas coisas mentalmente e sabia que ia precisar de materiais básicos, coisas, como alguns cadernos, lápis, borracha, apontador, mesa, cadeira. Então, me dei conta de que eu tinha tudo a minha disposição. Precavida e em busca de organização dos materiais da escola, dos estudos pessoais, dos estudos da filha e do filho, sempre tinha materiais sobrando em casa, como cadernos, lápis e borrachas que comprava. A mesa e as cadeiras não seriam problema, uma vez que tínhamos em casa uma grande mesa de madeira com dois bancos bem grandes também.

Bom, se os materiais não eram mais problema. O que ainda me fazia sentir de certa forma agoniada?

Sim, eram os responsáveis. Eu não tinha ideia de quem eles eram. Não sabia nem aonde o menino e os seus amigos moravam. Sabia que era fora, mas pertinho do Condomínio. Só isso. Precisava da autorização deles. Precisava conhecê-los. Então, decidi que só iria ensiná-los depois de conversar com os seus responsáveis ou ter alguma autorização por escrito.

No dia seguinte àquela segunda-feira, tudo parecia mais encaixado numa possibilidade real. Conversei com a minha família e explicitei qual seria o plano. Todos ficaram me olhando e pagando para ver “qual seria”. Mas logo, todos se envolveram e isso vou contar daqui a pouco.

Terça-feira. Eis que me chega novamente ao portão o menino da água. Outro rápido e estonteante diálogo foi travado:

-Tia, é hoje, né?

- Hum, não. Não é hoje. Hoje é terça-feira ainda.

Foi então que percebi que, no dia anterior àquele, o que havia considerado ansiedade de quem quer logo aprender a ler e escrever, na verdade era alguém me dizendo que não tinha ideia sobre o tempo. Logo eu, professora experiente, fui pega nas minhas distrações ou preocupações outras. Retornei para ele o que seria a nossa primeira aula-encontro. Expliquei que estávamos ainda na terça-feira; que a semana começa no domingo, dia em que nos encontramos e nos reconhecemos (eu já o havia visto em outros momentos na praça, mas sem tecer qualquer conversa); que faltavam ainda a quarta, a quinta e que, então chegaria o grande dia, a sexta-feira do nosso encontro.

No dia seguinte, já podemos imaginar o que ocorreu e nem preciso contar aqui.

A tão esperada sexta-feira chegou e ao abrir o portão da casa, me deparei com sete jovens. Todos alegaram não saberem ler. Pedi que retornassem as suas casas e pedissem para alguém da família ir conversar comigo. Ninguém apareceu. Os meninos e a única menina que viera com eles me disseram quem alguns não tinham ninguém em casa e outros que a mãe estava cuidando do irmão e em outros afazeres domésticos. Imaginei que poderia ser vergonha ou algo parecido. Então pedi que aqueles que tinham algum familiar em casa retornasse e pedisse que ele escrevesse um pequeno bilhete tomando ciência e autorizando as aulas de alfabetização. Quem não tivesse, poderia voltar, junto com os outros, na próxima terça-feira. Todos retornaram no mesmo dia com algum papel escrito com letras um tanto ilegíveis e assinados. Tamanha ansiedade, decidi que ficaria com eles naquele dia.

Conversamos sobre seus nomes, onde estudavam, alguns dados familiares (se tinha irmãos, se alguém em casa ajudava nos deveres da escola) e as expectativas. Era para mim importante saber que eles também estavam assumindo um compromisso com a aprendizagem deles. E conversamos muito sobre isso e também sobre as suas maiores dificuldades na escola.

A maioria confundia o traçado das letras, eram copistas, mas não sabiam o que estavam copiando, pois algumas letras ainda eram desconhecidas. Para alguns, pouco tempo depois, bastou apenas isso. Uma revisão e um pouco de treino sobre os diferentes traçados e sons das letras que compõe o nosso alfabeto. 

Pediam-me muito ditado, pois na escola era uma atividade recorrente e eles erravam muito. Queriam acertar. Combinei que faríamos alguns ditados, sim mas que também experimentaríamos outras atividades como produzir cartas e outros textos. Ficaram assustados. Disse-lhes que podiam confiar, e deixar o medo de lado, pois não estariam sozinhos. Faríamos juntos e com o tempo eles próprios iriam perceber que poderiam fazer sozinhos.

Todos desejo de aprender e estavam animados com uma nova possibilidade de aprendizado. Acontece que eram extremamente agitados e ainda não tinham senso de organização, pessoal, de materiais. Isso parecia afetar bastante a concentração deles. A menina era mais tranquila. Já conhecia as letras, confundia-se nas construções das frases para compor pequenos textos. Poucos treinos de construção de escrita lhe ajudaram e ela começou logo a se sentir muito confiante e me pediu para ajudar aos que tinham maior dificuldade, pois o sonho dela era ser ajudante da professora dela e ajudar na sala de aula. Sonho realizado em pouco tempo dos que ficamos juntos. Algo me disse que faltava-lhe confiança em si mesma. Ganhou o mundo. Mas quis continuar conosco.

Dos sete, na semana seguinte contamos treze. O menino da água me apresentou a sua prima. 15 anos. Já estava no 7º ano de escolaridade e me disse que tinha muita dificuldade para escrever e confundia as palavras e algumas letras também. Na semana seguinte, ela trouxe o seu outro primo também do sétimo ano, com dificuldades semelhantes e muita vontade de aprender matemática.

Percebi que precisava de ajuda para dar conta dos alfabetizandos em fase inicial, carinhosos e respeitosos comigo, mas desconcentrados e brigões entre si, apesar de desejosos de aprender. Solicitei ajuda do Mauro Roberto, meu esposo, para ajudar com os mais adiantados na seriação escolar.

A cada semana chegava mais um. Era um irmão que lia, mas tinha dificuldade, era o amigo curioso para saber o que se fazia ali nas noites de terça e sexta. Foi preciso dividir o grupo, o que eles e elas (agora três meninas) nada gostaram, mas a coisa estava ficando cansativa demais. Muita briga entre os familiares, discutindo causos outros que lhes afligiam.

Entendi bem o que se passava com cada um. Não era nada fácil o dia-a-dia para eles. Dois iam para o sinal vender balas, outro ajudava um tio num bar, a menina mais velha tomava conta dos seus seis irmãos. Como demonstrava agitação. Ficamos amiga e ela começou a me confidenciar seus dias na escola e na sua casa. Senti que precisa de algum ouvido. Dissera-me que brigava na escola todos os dias. Que batia nos meninos e nas meninas que viessem “ter com ela” qualquer desagrado. Tentei orientar da melhor maneira que acreditava pudesse ajuda-la. Ela insistia: “- Ah, Tia, eu que não vou ficar levando desaforo para casa! Não vou mesmo!”.

Precisei reformular diversas vezes as palavras que utilizaria nas conversas com a menina brigona. Então, contei que eu levava desaforo para casa as vezes. Ela ficou muito surpresa. Expliquei que eu não ficava feliz, mas as vezes era situação na escola, com aluno, com diretor/a, ou no trânsito. Demorou um pouco, mas aos poucos ela foi se desarmando. Parecia que a vida dela era precisar se defender todo o tempo: “-Ah, Tia, deixa eu ser sua filha!”. Ela começou a trazer a irmãzinha de seis anos que tomava conta. 

Fomos nos tornando, com muita conversa, discussões calorosas e algumas “ralhações”, um grupo de amigos e amigas. Um/a começou a cuidar do/a outro/a, assim que se sentia confiante nas leituras.

Todos que começavam a ler pediam para levar para casa um livro da caixinha que tínhamos disponível: “Tia, deixa eu levar esse livro para mostrar para a minha mãe ver que eu já estou lendo sozinho. Vou ler todinho, vai ver só!”. O primeiro a sentir-se e descobrir-se leitor foi incentivando mais ainda os outros.

Não queriam ir embora. Tinha que expulsá-los. “Vão, gente. Tenho que tomar banho e fazer janta ainda!”.

“- O que você vai comer hoje, Tia? Não tem nada lá em casa hoje, a patroa da minha mãe foi pro shopi e não pagou ela, aquela vaca, tia” (sim, uma vaca! Pensei e falei). Sorrimos. De pronto, larguei tudo e fui preparar um lanche com ajuda da filha e do esposo. Daquele dia em diante, sempre fazíamos um lanchinho, não importava quem tinha ou não o que comer em casa.

Aos poucos, os responsáveis ficaram sabendo dos lanches e quiseram ajudar. Àquela altura, acho que já estavam certos de que eu não iria cobrar nada pelas aulas dos filhos. Fui conhecendo uma a uma, e um pai. Todos muito agradecidos.

Mas quem mais tinha para agradecer era eu. Como aprendi com aquelas crianças. Como pude compreender melhor a minha própria prática pedagógica através das interlocuções de cada um/a.

Todos aprenderam a ler e começaram a escrever, mas precisavam de alguém que continuasse acreditando neles. Me mudei de residência no ano seguinte, a filha havia passado para o Colégio que toda a família sonhara, o Colégio Pedro II. E como ficaria muito distante. Decidimos nos mudar. Foi uma tristeza só, mas o dever havia sido cumprido e com louvor.

Hoje, quando vamos visitar a tia que ainda mora no condomínio e nos vemos, fazemos todos uma festa e tanto com muitos abraços e olhinhos cachoeirando.





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